O meu pai está sepultado no cemitério de Vila do Conde. Lembro-me do
que diz Saramago acerca de sabermos o nome que nos deram, mas não sabermos o
nome que temos. De igual modo me parece que sabemos o lugar de onde viemos, mas
procuramos depois o lugar a que pertencemos. Pertenço a Vila do Conde. Em dezembro
passarão trinta anos desde a vinda da minha família para esta cidade, trinta
dos meus trinta e nove, nesse mês, que são quase toda a minha vida.
Quase toda a minha vida tem que ver com estar aqui, mais exatamente nas
Caxinas, a conhecer o mundo desde onde se fala um português diferente, tão
criativo quanto inspirador para um escritor. Estou onde estão os pescadores, e
reparo nas luzes das traineiras que ficam adiante quando vou na marginal, vejo
o passo atarefado das mulheres que tomam conta dos dias enquanto os homens
assim se ausentam, sinto o vento norte gelado mesmo quando não estou aqui,
desconfio das águas com respeito, mas todos os mares me são explicados pela
experiência deste.
O Fernando Pessoa dizia que era possível tirar o rapaz da aldeia, mas
nunca a aldeia de dentro do rapaz. Mesmamente já poderão levar-me, reter-me,
impedir-me para Marte que nunca poderão desfazer estas ruas e estas casas mais
estas gentes de dentro de mim. Estas são as medidas essenciais para todas as
demais ruas, casas e gentes, com estas afiro com maior ou menor exatidão como
são os outros. Nós somos estes. Eu sou destes, a estes pertenço com orgulho.
Sei que para chegar aqui me coube a sorte das opções dos meus pais, mas
é inequívoco que continuar aqui, ainda hoje, se deve exclusivamente à minha
vontade que, entre muitas viagens, encontra nas Caxinas de sempre o outro lado
de tantas saídas, porque pelas Caxinas de sempre defino o conceito de casa e confesso
até que não me sinto bem quando estou demasiado tempo longe do seu conforto.
Sob as minhas janelas estão umas arvoritas a tentar crescer há duas
décadas. Umas vão sucumbindo e outras aguentando, assim meio a prometer cair
porque são muito lingrinhas de troncos finos e delicados. Estou há duas décadas
a vê-las pelas janelas e a torcer para que superem as intempéries e os
estafermos dos miúdos que passam algaraviados aos pontapés a tudo. De vez em
quando, corro o vidro e mando-lhes uns berros para perceberem que há quem
espere daquelas árvores uma companhia para muitos anos. O que se vê das minhas
janelas não é o mais bonito de Vila do Conde, que é tão bonito, nem sequer o
melhor das Caxinas é, mas é o que vejo há tanto tempo que me habituei a pensar
que cada coisa existe ali para meu conforto, como uma ideia de estabilidade que
é assente na permanência das coisas, coisas em que podemos confiar e das quais
esperamos só um acolhimento, um espaço, uma pertença.
Sendo públicas, aquelas árvores são mesmo minhas, e assim tenho todo o
direito de estardalhar contra os miúdos e de achar que as árvores dos meus
livros são, um pouco, aquelas, as que protejo porque, ainda que não estejam nas
praças ou nos jardins principais, são as que purificam o oxigénio perto de mim
e sossegam comigo a cada noite, sentindo o mesmo vento norte gelado que, acho,
sentiriam ainda que as mudassem, mesmo que as impedissem para Marte.
O executivo da Câmara Municipal de Vila do Conde atribuiu-me uma
medalha de mérito. Eu recebo-a com um agradecimento que, dirigido ao executivo,
tem de incluir a opção dos meus pais mais as ruas e as casas e sobretudo as
gentes a que sinto pertencer. Agradeço aos amigos, por quem vale a pena abdicar
das oportunidades das terras maiores para me manter genuíno no tamanho da minha
terra. Esta medalha de mérito vai estar entre as minhas coisas mais
identitárias, aquelas que guardo como tesouros do meu caráter, da minha alma se
a alma fosse coisa de ver e manifestar em objetos.
Tenho um galo de Barcelos que a minha mãe me deu, porque dá sorte, e
passei a fazer coleção de galos de Barcelos; tenho um Cristo de plástico que
apanhei do lixo quando era pequeno, embora não acredite na transcendência este
Cristo é meu amigo; tenho um busto do Mao Tse Tung forrado a veludo vermelho
mas que é um mealheiro e diverte-me que o Mao Tse Tung seja assim ironizado;
tenho uma estatueta de Saramago e faço-lhe festas na careca; guardo o
manuscrito do único poema que o meu pai escreveu; tenho os discos todos da Amália;
tenho o meu retrato pintado pela Isabel Lhano; tenho em formato grande a
fotografia que o Nelson d’Aires me fez; ainda tenho um cavalo-marinho seco que
me ofereceram e sinto sempre pena dele, por isso conto um dia atirá-lo ao mar
para que se desfaça na água dignamente; tenho um ipod touch que raramente uso
mas que diz amo-te quando o ligo; tenho um colar que me deu um amigo ucraniano
depois de ler o meu romance. Entre estas coisas estará a medalha de mérito que
recebi. Todas juntas, assim como num abraço que as carregasse a todas, são
pistas para as minhas memórias mais marcantes, porque cada uma abre o longo
caminho da vida nos seus mais distintos sentidos. O longo caminho da vida, no
entanto, que já me levou de Nova Iorque a Hong Kong, de Riade a Maputo ou do
Dubai ao Rio de Janeiro, o longo caminho da vida dá sempre para aqui, para as
Caxinas e estou certo de que um dia estarei mais do que definido no nome que
escolhi, Valter Hugo Mãe, e no lugar a que pertenço, Vila do Conde, quanto mais
não seja, a partir do momento em que me deitem ao pé do meu pai.
In JL n.º 1041, de 25 de
Agosto de 2010