Foram dizer-me que a plantavam. Havia de
nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de
terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado,
achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou
a chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali
sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria
montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.
Wednesday, October 30, 2013
Thursday, October 24, 2013
Saturday, October 19, 2013
Índice Médio de Felicidade - escrever sobre o que foi dito
Experimento emoções contraditórias em relação a este livro. Uma leitura que não me realizou a 100%. Escrito na primeira pessoa, lemos a voz de Daniel, um idealista optimista com uma tremenda fé no futuro.
Daniel começa por me irritar. A sua fixação no sucesso não é real, tanta vontade de vencer e certeza de concretizar objectivos passa a teimosia oca quando tudo vai desabando à sua volta. Perde o emprego, perde a casa, separa-se da família, e continua plenamente confiante no sucesso que escreveu num caderno há muitos anos. Credível é ter sonhos, verosímil é ser determinado, inteligente é encontrar um plano alternativo.
Mais um livro sobre a crise, sobre a injustiça e o desemprego, sobre uma juventude capaz e competente que perde emprego qualificado e acha uma sorte conseguir trabalhar a fazer entregas. Daniel é salvo pela determinação e pela sorte, assim pensa ele, mas a sorte é aleatória, não depende da determinação. A sua revolta é demonstrada pelo uso abusivo de palavrões, que achei excessivo e me desagradou; haveria outras formas de expressar a angústia da personagem.
Daniel é “Amanhã o sol volta a nascer” levado ao extremo. É convicto que tudo pode resultar e que os seus intentos serão concretizados. Pode o sonho justificar essa tenacidade? Esse investimento na incerteza? A fé cega?
Foi esta dualidade que me manteve nesta leitura. Tentei gerir o conflito que senti pelas atitudes irracionais de Daniel, com a luz do sonho que o orienta. A utopia de que há reviravoltas, que a sorte, o destino ou o que seja cumpre a sua função de colocar de novo a vida sobre carris.
Um livro que não me convenceu verdadeiramente mas que vale pelo conflito em que me colocou e pela discussão que pode iniciar. Composto de contrastes. Não se consegue ficar indiferente.
Uma leitura que leva a uma reflexão sobre a felicidade e que, provavelmente, me fez incluir mais variáveis nos meus cálculos pessoais. Na certeza de que o meu índice médio de felicidade não é o mesmo na primeira e na última página.
Daniel começa por me irritar. A sua fixação no sucesso não é real, tanta vontade de vencer e certeza de concretizar objectivos passa a teimosia oca quando tudo vai desabando à sua volta. Perde o emprego, perde a casa, separa-se da família, e continua plenamente confiante no sucesso que escreveu num caderno há muitos anos. Credível é ter sonhos, verosímil é ser determinado, inteligente é encontrar um plano alternativo.
Mais um livro sobre a crise, sobre a injustiça e o desemprego, sobre uma juventude capaz e competente que perde emprego qualificado e acha uma sorte conseguir trabalhar a fazer entregas. Daniel é salvo pela determinação e pela sorte, assim pensa ele, mas a sorte é aleatória, não depende da determinação. A sua revolta é demonstrada pelo uso abusivo de palavrões, que achei excessivo e me desagradou; haveria outras formas de expressar a angústia da personagem.
Daniel é “Amanhã o sol volta a nascer” levado ao extremo. É convicto que tudo pode resultar e que os seus intentos serão concretizados. Pode o sonho justificar essa tenacidade? Esse investimento na incerteza? A fé cega?
Foi esta dualidade que me manteve nesta leitura. Tentei gerir o conflito que senti pelas atitudes irracionais de Daniel, com a luz do sonho que o orienta. A utopia de que há reviravoltas, que a sorte, o destino ou o que seja cumpre a sua função de colocar de novo a vida sobre carris.
Um livro que não me convenceu verdadeiramente mas que vale pelo conflito em que me colocou e pela discussão que pode iniciar. Composto de contrastes. Não se consegue ficar indiferente.
Uma leitura que leva a uma reflexão sobre a felicidade e que, provavelmente, me fez incluir mais variáveis nos meus cálculos pessoais. Na certeza de que o meu índice médio de felicidade não é o mesmo na primeira e na última página.
Márcia Balsas
Thursday, October 17, 2013
Índice médio de Felicidade - opinião
Mal acabei de ler este livro surgiu uma pergunta dentro de mim: "Será que este autor tem outros livros?"
Depois de pesquisar um pouco, reparei na sinopse e na capa do "Deixem falar as Pedras" que vou querer ler em breve... Mas voltemos ao Índice Médio de Felicidade: gostei muito desta leitura. Rapidamente entrei na história e criei empatia com o personagem principal, Daniel.
A escrita do autor é clara, límpida, com poucos floreados. Como gosto. As palavras aparecem no lugar certo. Algumas, mais rudes, também. Não me feriram. Achei que pertenciam à história, que estavam bem situados. No contexto certo.
A história relatada poder-se-ia passar com qualquer um de nós. Cenas fortes, duras. Às vezes a vida é madrasta e prega-nos partidas com as quais não contamos... Daniel viu-se, como tantos nós hoje em dia, sem emprego e, mais tarde, sem casa. Com família. Sempre acreditando que vai ultrapassar tudo. E escreve para um amigo de há longos anos, que se encontra preso, contando, acusando, relembrando.
A trama urdida pelo escritor envolve com mestria, Daniel, seus amigos próximos e sua família. O texto possui intensos e emotivos diálogos que nos envolvem na história, nos prendem e que descrevem com autenticidade aspectos do nosso Portugal de hoje.
Gostei do final. Não vos conto, fica para vocês apreciarem. Como eu fiz. Recomendadíssimo! Um daqueles livros que gostaríamos de ter sido nós a escrever...
Cris
Wednesday, October 16, 2013
Sunday, October 13, 2013
Todos esperamos ajuda
“Havia tanta coisa para fazer, tantos lugares onde estar, tanta vontade para consolar, mas andamos a gastar os dias uns dos outros, por não sabemos tomar conta de nós próprios, não sabemos fazer o que é exigido de nós e continuar em frente quando nos perdemos no caminho que seguíamos, e então contamos que alguém apareça, que nos dê a mão, ou o braço, ou a vida. Eu não que ajudar ninguém e também não quero ser ajudado.”
Sublinhado por Márcia Balsas,
no Índice Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 213)
Wednesday, October 9, 2013
Estudar o futuro
“Não tive medo. Lembro-me disso. Repara, eu tinha o futuro escrito num caderno, li-o dezenas de vezes, estudei-o, pensei-o, as palavras assumiram uma solidez dentro de mim, quase um instinto, a minha certeza em relação àquilo que estava para acontecer era inabalável.”
sublinhado por Márcia Balsas,
no Índice Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 49)
Tuesday, October 8, 2013
Pensar no futuro
Foi
isso, essa falta de futuro, que me assustou. Como é que ele consegue não pensar
no futuro? Como é que amanhã, ou no mês que vem, ou daqui a dez anos não lhe
pesa no espírito? Como é que uma pessoa pode acordar todas as manhãs e não
sentir qualquer esperança ou receio daquilo que está para acontecer? Eu não
sabia falar com uma pessoa assim.
sublinhado pela Márcia Balsas,
no Índice
Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 17)
Saturday, October 5, 2013
Índice Médio de Felicidade: primeiro parágrafo
8,0. Suíça
Antes de mais, repara, Almodôvar, tu não estavas cá.
As coisas ficaram muito difíceis muito depressa. Ou talvez tenha sido
sempre assim, talvez o mundo tenha sido sempre um lugar complicado. Não creio
que tenha começado quando foste preso, ainda que, de alguma forma, isso me
pareça o início de tudo. E a tua ausência reforçou as nossas dores, a tua
decisão de não quereres ver ninguém teve consequências. O que é o mesmo que
dizer: não estávamos preparados para não te ter aqui. Deixaste demasiado espaço
vazio e nenhum de nós sabia muito bem mover‑se na amplitude desse
abandono. Mas tu não estavas cá, nós não podíamos fazer mais do que tentar.
Ainda não sei se falhámos. Sei apenas isto: não serás tu a decidir sobre os
nossos fracassos. Em algum momento da história, a coerência do teu silêncio
tornou‑se
uma condição.
Wednesday, October 2, 2013
Mote: A Fé do Escritor, de Joyce Carol Oates
Acredito
que a arte é a expressão mais elevada do espírito humano.
Acredito que desejamos ir para além
do meramente finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que
damos o nome de «cultura» – e que essa aspiração é tão profunda no ser humano
quanto o desejo de reprodução da espécie.
A partir do que nos
é mais ou menos próximo, através das nossas vozes individuais, esforçamo-nos
por criar arte capaz de falar ao coração dos outros que nada sabem a nosso
respeito. Fruto de uma ambiguidade muito própria na relação com os outros,
nasce uma inesperada intimidade.
A voz individual é a voz comum.
A
voz regional é a voz universal.
In A Fé de Um Escritor, Casa das Letras,
2003
O passeio, de David Machado
Ela
olha para o filho: pela primeira vez em muito tempo ele não parece prestes a
cair por terra com o peso que o mundo exerce na débil estrutura dos seus treze
anos. Ela sente o impulso do alívio. Está convencida de que ele se afundou
ainda mais depois de se terem mudado para uma aldeia no meio do nada e qualquer
sinal de ânimo lhe serve para afastar a culpa.
Há
nuvens negras no céu e o ar está duro do frio. Ainda assim ela diz: O cão não
aparece há dois dias. Vamos procurá-lo. Embora não esteja mesmo preocupada com
o cão. Quer apenas gozar aquele momento de alento do filho, talvez prolongá-lo.
Sem hesitar, ele aceita. A felicidade no corpo dela é quase uma dor, ela quer
abraçá-lo mas sabe que isso poderia estragar tudo.
Saem
os dois.
Caminham
lado a lado, em silêncio, o bafo das suas respirações denunciando-lhes o
cansaço. De vez em quando ela grita o nome do cão. Ele olha o chão diante dos
ténis. Ela diz: Gosto tanto de andar a pé. Ele não responde mas olha para ela e
dobra os cantos da boca. Passam da estrada de terra para um caminho de cabras.
Saltam por cima de água e lama, os pés dela seguindo os pés do filho.
E
depois ela solta um grito.
É
o cão. Está morto, pendurado por uma corda no ramo de um pinheiro. Tem a
garganta rasgada. Há dois paus cravados nos olhos. As patas foram cortadas. Não
é um cão, está muito longe de ser um cão.
Ela
agarra o filho para ele não olhar e vê um rasgo de satisfação contida no rosto
dele. Primeiro não entende, esforça-se por não entender. Mas a evidência é um
penedo no seu caminho. Ela quer chorar. Na sua cabeça vê o filho a correr atrás
do cão, depois a apanhá-lo, depois a… Para, grita para dentro de si. O cadáver
desfaz-se no chão de terra. O filho olha para o cão e depois para ela. Ela
começa a chorar. Limpa a cara, mas as lágrimas não param de cair e ela desiste.
Respira fundo algumas vezes. Diz: Já passa. Depois pega na mão do filho e os
dois afastam-se e continuam o passeio.
In Histórias Daninhas, edição de Guilherme
Pires e João Afonso, 2012
Medalha de mérito, de Valter Hugo Mãe
O meu pai está sepultado no cemitério de Vila do Conde. Lembro-me do
que diz Saramago acerca de sabermos o nome que nos deram, mas não sabermos o
nome que temos. De igual modo me parece que sabemos o lugar de onde viemos, mas
procuramos depois o lugar a que pertencemos. Pertenço a Vila do Conde. Em dezembro
passarão trinta anos desde a vinda da minha família para esta cidade, trinta
dos meus trinta e nove, nesse mês, que são quase toda a minha vida.
Quase toda a minha vida tem que ver com estar aqui, mais exatamente nas
Caxinas, a conhecer o mundo desde onde se fala um português diferente, tão
criativo quanto inspirador para um escritor. Estou onde estão os pescadores, e
reparo nas luzes das traineiras que ficam adiante quando vou na marginal, vejo
o passo atarefado das mulheres que tomam conta dos dias enquanto os homens
assim se ausentam, sinto o vento norte gelado mesmo quando não estou aqui,
desconfio das águas com respeito, mas todos os mares me são explicados pela
experiência deste.
O Fernando Pessoa dizia que era possível tirar o rapaz da aldeia, mas
nunca a aldeia de dentro do rapaz. Mesmamente já poderão levar-me, reter-me,
impedir-me para Marte que nunca poderão desfazer estas ruas e estas casas mais
estas gentes de dentro de mim. Estas são as medidas essenciais para todas as
demais ruas, casas e gentes, com estas afiro com maior ou menor exatidão como
são os outros. Nós somos estes. Eu sou destes, a estes pertenço com orgulho.
Sei que para chegar aqui me coube a sorte das opções dos meus pais, mas
é inequívoco que continuar aqui, ainda hoje, se deve exclusivamente à minha
vontade que, entre muitas viagens, encontra nas Caxinas de sempre o outro lado
de tantas saídas, porque pelas Caxinas de sempre defino o conceito de casa e confesso
até que não me sinto bem quando estou demasiado tempo longe do seu conforto.
Sob as minhas janelas estão umas arvoritas a tentar crescer há duas
décadas. Umas vão sucumbindo e outras aguentando, assim meio a prometer cair
porque são muito lingrinhas de troncos finos e delicados. Estou há duas décadas
a vê-las pelas janelas e a torcer para que superem as intempéries e os
estafermos dos miúdos que passam algaraviados aos pontapés a tudo. De vez em
quando, corro o vidro e mando-lhes uns berros para perceberem que há quem
espere daquelas árvores uma companhia para muitos anos. O que se vê das minhas
janelas não é o mais bonito de Vila do Conde, que é tão bonito, nem sequer o
melhor das Caxinas é, mas é o que vejo há tanto tempo que me habituei a pensar
que cada coisa existe ali para meu conforto, como uma ideia de estabilidade que
é assente na permanência das coisas, coisas em que podemos confiar e das quais
esperamos só um acolhimento, um espaço, uma pertença.
Sendo públicas, aquelas árvores são mesmo minhas, e assim tenho todo o
direito de estardalhar contra os miúdos e de achar que as árvores dos meus
livros são, um pouco, aquelas, as que protejo porque, ainda que não estejam nas
praças ou nos jardins principais, são as que purificam o oxigénio perto de mim
e sossegam comigo a cada noite, sentindo o mesmo vento norte gelado que, acho,
sentiriam ainda que as mudassem, mesmo que as impedissem para Marte.
O executivo da Câmara Municipal de Vila do Conde atribuiu-me uma
medalha de mérito. Eu recebo-a com um agradecimento que, dirigido ao executivo,
tem de incluir a opção dos meus pais mais as ruas e as casas e sobretudo as
gentes a que sinto pertencer. Agradeço aos amigos, por quem vale a pena abdicar
das oportunidades das terras maiores para me manter genuíno no tamanho da minha
terra. Esta medalha de mérito vai estar entre as minhas coisas mais
identitárias, aquelas que guardo como tesouros do meu caráter, da minha alma se
a alma fosse coisa de ver e manifestar em objetos.
Tenho um galo de Barcelos que a minha mãe me deu, porque dá sorte, e
passei a fazer coleção de galos de Barcelos; tenho um Cristo de plástico que
apanhei do lixo quando era pequeno, embora não acredite na transcendência este
Cristo é meu amigo; tenho um busto do Mao Tse Tung forrado a veludo vermelho
mas que é um mealheiro e diverte-me que o Mao Tse Tung seja assim ironizado;
tenho uma estatueta de Saramago e faço-lhe festas na careca; guardo o
manuscrito do único poema que o meu pai escreveu; tenho os discos todos da Amália;
tenho o meu retrato pintado pela Isabel Lhano; tenho em formato grande a
fotografia que o Nelson d’Aires me fez; ainda tenho um cavalo-marinho seco que
me ofereceram e sinto sempre pena dele, por isso conto um dia atirá-lo ao mar
para que se desfaça na água dignamente; tenho um ipod touch que raramente uso
mas que diz amo-te quando o ligo; tenho um colar que me deu um amigo ucraniano
depois de ler o meu romance. Entre estas coisas estará a medalha de mérito que
recebi. Todas juntas, assim como num abraço que as carregasse a todas, são
pistas para as minhas memórias mais marcantes, porque cada uma abre o longo
caminho da vida nos seus mais distintos sentidos. O longo caminho da vida, no
entanto, que já me levou de Nova Iorque a Hong Kong, de Riade a Maputo ou do
Dubai ao Rio de Janeiro, o longo caminho da vida dá sempre para aqui, para as
Caxinas e estou certo de que um dia estarei mais do que definido no nome que
escolhi, Valter Hugo Mãe, e no lugar a que pertenço, Vila do Conde, quanto mais
não seja, a partir do momento em que me deitem ao pé do meu pai.
In JL n.º 1041, de 25 de
Agosto de 2010
Havia, de Joana Bértholo
Havia
um Ricardo que queria ser um Francisco. Se pudesse ser um Francisco evitaria
para sempre ser um João, ou um Manuel, ou um Daniel. Ou até mesmo um Pedro.
Também não se importaria de ser um Afonso, um Carlos ou um Bernardo, mas o seu
favorito era mesmo um Francisco.
No
dia em que um Gaspar encontrou um Ricardo na rua confundiu-o com um Abel e
disse-lhe, confuso:
–
Bom dia, Martim.
O
Martim não queria ser um Ricardo, mas adoraria ser um Rodolfo. Contudo, quando
o tentou ser, alguém o confundiu com um Fernando, e desde então deixou-se ficar
mesmo um Martim.
Havia
um Ricardo que queria ser um Francisco e certo dia encontrou um António que lhe
perguntou:
–
Como vão os teus pais, a D. Madalena e o senhor Artur?
O
Ricardo que queria ser um Francisco ficou perplexo, pois era evidente que um
António sabia perfeitamente que os seus pais não se chamavam D. Madalena nem
senhor Artur, mas sim, claro, D. Deolinda e senhor Cláudio.
*****
Havia
um Daniel que queria ser Francisco, mas nomes há muitos.
In Havia, Caminho, 2012
Querelas, de Afonso Cruz
Diz
a regra, a de S. Bento, que o monge se deve confessar a Deus, diariamente e na
solidão da cela, em lágrimas. O jovem Fabiano era o noviço que todos os dias
entrava na cela do santo e com uma pequena espátula raspava do chão o que
sobrava das lágrimas de S. Bento. Ajuntou o sal num frasquinho que ainda hoje
pode ser admirado no santuário de Rocamadour.
No
ano de 1453, o abade Teodoro de Reims teve graves problemas de desobediência no
seu mosteiro. Intrigas, questiúnculas e violência que não conseguia sanar de
modo algum, nem com a divina lectio,
nem com a confissão, nem com os salmos, oração ou sermão. Nem com os bocados de
pão ázimo que é o corpo Cristo, nem mesmo com uma conversa franca (que é o
melhor responso). Por isso, um dia, pela ceia, contou a história de Fabiano e
das lágrimas de S. Bento. Mostrou aos monges um frasco vazio e disse que havia
utilizado o sal para temperar a refeição. Os monges, comovidos com o que lhes
era revelado, abraçaram-se e os problemas acabaram ali. Esse sal operara a
transmutação, fizera do ódio, amizade.
O
abade Teodoro de Reims abandonou nesse mesmo dia o mosteiro onde fora abade
durante mais de trinta anos.
–
Prefiro não conviver com pessoas que acreditam mais num punhado de sal do que
no arrependimento verdadeiro – anunciou o abade antes de voltar para o mundo.
In Enciclopédia da Estória Universal,
Quetzal, 2009
O escritor com pouco vocabulário, de Gonçalo M. Tavares
Tinha
um teclado de computador que em vez de teclas com letras tinha teclas com
palavras. Essas teclas eram substituíveis.
Como
o teclado só tinha capacidade para cerca de cinquenta teclas ele havia
construído um enorme arquivo. Quando era necessário, isto é, quando queria
escrever uma determinada palavra que não estava no seu teclado, ele ia buscar
ao arquivo uma tecla-palavra e colocava-a no sítio.
Acusavam-no
de ter falta de vocabulário, mas o que ele tinha era falta de espaço.
In Contos de Algibeira, Casa Verde, Brasil,
2007
Tuesday, October 1, 2013
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