Wednesday, October 2, 2013

O passeio, de David Machado

Ela olha para o filho: pela primeira vez em muito tempo ele não parece prestes a cair por terra com o peso que o mundo exerce na débil estrutura dos seus treze anos. Ela sente o impulso do alívio. Está convencida de que ele se afundou ainda mais depois de se terem mudado para uma aldeia no meio do nada e qualquer sinal de ânimo lhe serve para afastar a culpa.
Há nuvens negras no céu e o ar está duro do frio. Ainda assim ela diz: O cão não aparece há dois dias. Vamos procurá-lo. Embora não esteja mesmo preocupada com o cão. Quer apenas gozar aquele momento de alento do filho, talvez prolongá-lo. Sem hesitar, ele aceita. A felicidade no corpo dela é quase uma dor, ela quer abraçá-lo mas sabe que isso poderia estragar tudo.
Saem os dois.
Caminham lado a lado, em silêncio, o bafo das suas respirações denunciando-lhes o cansaço. De vez em quando ela grita o nome do cão. Ele olha o chão diante dos ténis. Ela diz: Gosto tanto de andar a pé. Ele não responde mas olha para ela e dobra os cantos da boca. Passam da estrada de terra para um caminho de cabras. Saltam por cima de água e lama, os pés dela seguindo os pés do filho.
E depois ela solta um grito.
É o cão. Está morto, pendurado por uma corda no ramo de um pinheiro. Tem a garganta rasgada. Há dois paus cravados nos olhos. As patas foram cortadas. Não é um cão, está muito longe de ser um cão.
Ela agarra o filho para ele não olhar e vê um rasgo de satisfação contida no rosto dele. Primeiro não entende, esforça-se por não entender. Mas a evidência é um penedo no seu caminho. Ela quer chorar. Na sua cabeça vê o filho a correr atrás do cão, depois a apanhá-lo, depois a… Para, grita para dentro de si. O cadáver desfaz-se no chão de terra. O filho olha para o cão e depois para ela. Ela começa a chorar. Limpa a cara, mas as lágrimas não param de cair e ela desiste. Respira fundo algumas vezes. Diz: Já passa. Depois pega na mão do filho e os dois afastam-se e continuam o passeio.


In Histórias Daninhas, edição de Guilherme Pires e João Afonso, 2012

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