Wednesday, October 2, 2013

Querelas, de Afonso Cruz

Diz a regra, a de S. Bento, que o monge se deve confessar a Deus, diariamente e na solidão da cela, em lágrimas. O jovem Fabiano era o noviço que todos os dias entrava na cela do santo e com uma pequena espátula raspava do chão o que sobrava das lágrimas de S. Bento. Ajuntou o sal num frasquinho que ainda hoje pode ser admirado no santuário de Rocamadour.
No ano de 1453, o abade Teodoro de Reims teve graves problemas de desobediência no seu mosteiro. Intrigas, questiúnculas e violência que não conseguia sanar de modo algum, nem com a divina lectio, nem com a confissão, nem com os salmos, oração ou sermão. Nem com os bocados de pão ázimo que é o corpo Cristo, nem mesmo com uma conversa franca (que é o melhor responso). Por isso, um dia, pela ceia, contou a história de Fabiano e das lágrimas de S. Bento. Mostrou aos monges um frasco vazio e disse que havia utilizado o sal para temperar a refeição. Os monges, comovidos com o que lhes era revelado, abraçaram-se e os problemas acabaram ali. Esse sal operara a transmutação, fizera do ódio, amizade.
O abade Teodoro de Reims abandonou nesse mesmo dia o mosteiro onde fora abade durante mais de trinta anos.
– Prefiro não conviver com pessoas que acreditam mais num punhado de sal do que no arrependimento verdadeiro – anunciou o abade antes de voltar para o mundo.


In Enciclopédia da Estória Universal, Quetzal, 2009

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