Wednesday, July 23, 2014

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Tuesday, November 26, 2013

"Para onde vão os guarda-chuvas" de Afonso Cruz

Mal acabei de ler este livro e já estou aqui a escrever o que senti durante esta leitura. Não que seja o ideal porque é um livro tão rico, tão cheio de palavras plenas de sentido e belas que deveria deixar passar mais tempo para o assimilar melhor... MAS tive receio de começar outro livro e deixar os meus pensamentos, os meus sentidos misturarem-se com outras histórias.

Foi fantástico descobrir a escrita de Afonso Cruz. Já estava cansada de ouvir maravilhas e achei que qualquer leitura iria ficar aquém das minhas expectativas. MAS isso não aconteceu, de facto!

A história prende, claro. MAS prende muito mais a multiplicidade de personagens, a sua riqueza tanto ao nível dos pormenores físicos como psicológicos. O mudo que fala com as mãos e que com elas faz poesia, a criança que tudo faz para ser amada e que se parece com o pai adoptivo, "invisível como as paredes", são as minhas preferidas. 

Há frases belíssimas que nos fazem perguntar como é que é possível escrever tão bem. Frases que nos deliciam os sentidos, que nos elevam para outros mundos, outros amores. Frases que nos fazem sonhar. Delícias que relemos e relemos e relemos. Não nos cansam.

O fim é imprevisível. Inexplicável. Duro.

Recomendo muito esta leitura! Quero ler outras obras de Afonso Cruz. Será possível escrever assim, sempre?


Cris

Monday, November 25, 2013

Para onde vão os guarda-chuvas?

“Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?”

“Para onde vão os guarda-chuvas”, de Afonso Cruz (Pág. 493)

Excerto escolhido por Márcia Balsas

 

 

 

 

Sunday, November 17, 2013

O lago Avesso, Joana Bertholo,

Um Livro Numa Frase





" Vive de tal forma para a performance exterior das coisas que se esquece demasiadas vezes de olhar para dentro." 

In Joana Bértholo, O lago Avesso, pág. 43

Cris

Sunday, November 10, 2013

O lago avesso, o avesso do lago

“Quando oficialmente sai da cama é para ir dançar, lá para baixo. Ou então para se deixar ficar horas a fio pela varanda, tendo o azul do céu como teto: o lago ao fundo, do palco, no seu avesso.”

“O Lago Avesso, de Joana Bértholo (Pág. 165)

Excerto escolhido por Márcia Balsas

 

 

 

 

Sunday, November 3, 2013

Título do Post: "Sobre a Beleza"

Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela  expectativa da reunião com o outro. Ele afirmava: o nome da lagoa é Halla, é Sigridur.

Sublinhado por Ana Nogueira
em A Desumanização, de Valter Hugo Mãe

"A Desumanização" de Valter Hugo Mãe


Os livros são lidos de acordo com o nosso estado de alma e, inquieta como ando, este livro transmitiu-me uma instabilidade que não me agradou.

A escrita tão sui generis deste autor (li A máquina de fazer espanhóis e adorei!) em vez de me prender teve o condão de me dispersar e tive de repetir algumas partes do livro para entender o que por lá era dito. Acredito que o meu estado de alma não seja o melhor para uma leitura onde a prosa se mistura com mestria na poesia, mas ficará para outra ocasião uma outra leitura com outros olhos ou outros "sentires".

O facto de ter sido "escrito" por uma menina de 13 anos atraiu-me e nem pensei em não terminar a história que ela me contava. O tom íntimo com que impregna às palavras deixa um laivo de mistério que nos força a querer saber como termina a história. Mas tê-la-ia apreciado mais e melhor não fora a escrita tão própria do autor pois, como já referi, o seu tom poético fez-me dispersar nesta leitura.

Cris
O Tempo Entre Os Meus Livros

Saturday, November 2, 2013

Imaginar

“Lá de cima, goza de uma inigualável panorâmica sobre a cidade, de onde contempla a cada dia o diálogo entre a comprida língua verde de um jardim e o seu estreito lago ao centro, que Ella imagina ser gigante e erroneamente apequenado pela distância. Consegue passar tempo imenso só a observar este lago: a imaginar a temperatura da água sobre a pele despida, e as diferentes tonalidades que ganhará nos diferentes dias de sol, chuva, neblina ou neve. Mas nunca lá foi. É que entre Ella e esse lago estende-se aquele jardim amplo, aberto – quase obsceno -, e estende-se a decisão de não o atravessar.”

“O Lago Avesso, de Joana Bértholo (Pág. 80)

Excerto escolhido por Márcia Balsas

 

 

 

 

Wednesday, October 30, 2013

A Desumanização: primeiro parágrafo



Foram dizer-me que a plan­tavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando come­çou a chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria monta­nha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.

Saturday, October 19, 2013

Índice Médio de Felicidade - escrever sobre o que foi dito

Experimento emoções contraditórias em relação a este livro. Uma leitura que não me realizou a 100%. Escrito na primeira pessoa, lemos a voz de Daniel, um idealista optimista com uma tremenda fé no futuro.

Daniel começa por me irritar. A sua fixação no sucesso não é real, tanta vontade de vencer e certeza de concretizar objectivos passa a teimosia oca quando tudo vai desabando à sua volta. Perde o emprego, perde a casa, separa-se da família, e continua plenamente confiante no sucesso que escreveu num caderno há muitos anos. Credível é ter sonhos, verosímil é ser determinado, inteligente é encontrar um plano alternativo.

Mais um livro sobre a crise, sobre a injustiça e o desemprego, sobre uma juventude capaz e competente que perde emprego qualificado e acha uma sorte conseguir trabalhar a fazer entregas. Daniel é salvo pela determinação e pela sorte, assim pensa ele, mas a sorte é aleatória, não depende da determinação. A sua revolta é demonstrada pelo uso abusivo de palavrões, que achei excessivo e me desagradou; haveria outras formas de expressar a angústia da personagem.

Daniel é “Amanhã o sol volta a nascer” levado ao extremo. É convicto que tudo pode resultar e que os seus intentos serão concretizados. Pode o sonho justificar essa tenacidade? Esse investimento na incerteza? A fé cega?

Foi esta dualidade que me manteve nesta leitura. Tentei gerir o conflito que senti pelas atitudes irracionais de Daniel, com a luz do sonho que o orienta. A utopia de que há reviravoltas, que a sorte, o destino ou o que seja cumpre a sua função de colocar de novo a vida sobre carris.

Um livro que não me convenceu verdadeiramente mas que vale pelo conflito em que me colocou e pela discussão que pode iniciar. Composto de contrastes. Não se consegue ficar indiferente.

Uma leitura que leva a uma reflexão sobre a felicidade e que, provavelmente, me fez incluir mais variáveis nos meus cálculos pessoais. Na certeza de que o meu índice médio de felicidade não é o mesmo na primeira e na última página.

Márcia Balsas

Thursday, October 17, 2013

Índice médio de Felicidade - opinião

Mal acabei de ler este livro surgiu uma pergunta dentro de mim: "Será que este autor tem outros livros?"

Depois de pesquisar um pouco, reparei na sinopse e na capa do "Deixem falar as Pedras" que vou querer ler em breve... Mas voltemos ao Índice Médio de Felicidade: gostei muito desta leitura. Rapidamente entrei na história e criei empatia com o personagem principal, Daniel. 

A escrita do autor é clara, límpida, com poucos floreados. Como gosto. As palavras aparecem no lugar certo. Algumas, mais rudes, também. Não me feriram. Achei que pertenciam à história, que estavam bem situados. No contexto certo.

A história relatada poder-se-ia passar com qualquer um de nós. Cenas fortes, duras. Às vezes a vida é madrasta e prega-nos partidas com as quais não contamos... Daniel viu-se, como tantos nós hoje em dia, sem emprego e, mais tarde, sem casa. Com família. Sempre acreditando que vai ultrapassar tudo. E escreve para um amigo de há longos anos, que se encontra preso, contando, acusando, relembrando. 

A trama urdida pelo escritor envolve com mestria, Daniel, seus amigos próximos e sua família. O texto possui intensos e emotivos diálogos que nos envolvem na história, nos prendem e que descrevem com autenticidade aspectos do nosso Portugal de hoje.

Gostei do final. Não vos conto, fica para vocês apreciarem. Como eu fiz. Recomendadíssimo! Um daqueles livros que gostaríamos de ter sido nós a escrever...

Cris


Sunday, October 13, 2013

Todos esperamos ajuda

“Havia tanta coisa para fazer, tantos lugares onde estar, tanta vontade para consolar, mas andamos a gastar os dias uns dos outros, por não sabemos tomar conta de nós próprios, não sabemos fazer o que é exigido de nós e continuar em frente quando nos perdemos no caminho que seguíamos, e então contamos que alguém apareça, que nos dê a mão, ou o braço, ou a vida. Eu não que ajudar ninguém e também não quero ser ajudado.”

Sublinhado por Márcia Balsas, 
no Índice Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 213)




Wednesday, October 9, 2013

Estudar o futuro

“Não tive medo. Lembro-me disso. Repara, eu tinha o futuro escrito num caderno, li-o dezenas de vezes, estudei-o, pensei-o, as palavras assumiram uma solidez dentro de mim, quase um instinto, a minha certeza em relação àquilo que estava para acontecer era inabalável.”

sublinhado por Márcia Balsas, 
no Índice Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 49)





Tuesday, October 8, 2013

Pensar no futuro

Foi isso, essa falta de futuro, que me assustou. Como é que ele consegue não pensar no futuro? Como é que amanhã, ou no mês que vem, ou daqui a dez anos não lhe pesa no espírito? Como é que uma pessoa pode acordar todas as manhãs e não sentir qualquer esperança ou receio daquilo que está para acontecer? Eu não sabia falar com uma pessoa assim.


sublinhado pela Márcia Balsas,
no Índice Médio de Felicidade, de David Machado (pág. 17)

Saturday, October 5, 2013

Índice Médio de Felicidade: primeiro parágrafo


8,0. Suíça

Antes de mais, repara, Almodôvar, tu não estavas cá.
As coisas ficaram muito difíceis muito depressa. Ou talvez tenha sido sempre assim, talvez o mundo tenha sido sempre um lugar complicado. Não creio que tenha começado quando foste preso, ainda que, de alguma forma, isso me pareça o início de tudo. E a tua ausência reforçou as nossas dores, a tua decisão de não quereres ver ninguém teve consequências. O que é o mesmo que dizer: não estávamos preparados para não te ter aqui. Deixaste demasiado espaço vazio e nenhum de nós sabia muito bem mover‑se na amplitude desse abandono. Mas tu não estavas cá, nós não podíamos fazer mais do que tentar. Ainda não sei se falhámos. Sei apenas isto: não serás tu a decidir sobre os nossos fracassos. Em algum momento da história, a coerência do teu silêncio tornou‑se uma condição.

Wednesday, October 2, 2013

Mote: A Fé do Escritor, de Joyce Carol Oates

Acredito que a arte é a expressão mais elevada do espírito humano.
Acredito que desejamos ir para além do meramente finito e efémero; fazer parte de algo misterioso e comum a que damos o nome de «cultura» – e que essa aspiração é tão profunda no ser humano quanto o desejo de reprodução da espécie.
A partir do que nos é mais ou menos próximo, através das nossas vozes individuais, esforçamo-nos por criar arte capaz de falar ao coração dos outros que nada sabem a nosso respeito. Fruto de uma ambiguidade muito própria na relação com os outros, nasce uma inesperada intimidade.
A voz individual é a voz comum.                  
A voz regional é a voz universal.


In A Fé de Um Escritor, Casa das Letras, 2003

O passeio, de David Machado

Ela olha para o filho: pela primeira vez em muito tempo ele não parece prestes a cair por terra com o peso que o mundo exerce na débil estrutura dos seus treze anos. Ela sente o impulso do alívio. Está convencida de que ele se afundou ainda mais depois de se terem mudado para uma aldeia no meio do nada e qualquer sinal de ânimo lhe serve para afastar a culpa.
Há nuvens negras no céu e o ar está duro do frio. Ainda assim ela diz: O cão não aparece há dois dias. Vamos procurá-lo. Embora não esteja mesmo preocupada com o cão. Quer apenas gozar aquele momento de alento do filho, talvez prolongá-lo. Sem hesitar, ele aceita. A felicidade no corpo dela é quase uma dor, ela quer abraçá-lo mas sabe que isso poderia estragar tudo.
Saem os dois.
Caminham lado a lado, em silêncio, o bafo das suas respirações denunciando-lhes o cansaço. De vez em quando ela grita o nome do cão. Ele olha o chão diante dos ténis. Ela diz: Gosto tanto de andar a pé. Ele não responde mas olha para ela e dobra os cantos da boca. Passam da estrada de terra para um caminho de cabras. Saltam por cima de água e lama, os pés dela seguindo os pés do filho.
E depois ela solta um grito.
É o cão. Está morto, pendurado por uma corda no ramo de um pinheiro. Tem a garganta rasgada. Há dois paus cravados nos olhos. As patas foram cortadas. Não é um cão, está muito longe de ser um cão.
Ela agarra o filho para ele não olhar e vê um rasgo de satisfação contida no rosto dele. Primeiro não entende, esforça-se por não entender. Mas a evidência é um penedo no seu caminho. Ela quer chorar. Na sua cabeça vê o filho a correr atrás do cão, depois a apanhá-lo, depois a… Para, grita para dentro de si. O cadáver desfaz-se no chão de terra. O filho olha para o cão e depois para ela. Ela começa a chorar. Limpa a cara, mas as lágrimas não param de cair e ela desiste. Respira fundo algumas vezes. Diz: Já passa. Depois pega na mão do filho e os dois afastam-se e continuam o passeio.


In Histórias Daninhas, edição de Guilherme Pires e João Afonso, 2012

Medalha de mérito, de Valter Hugo Mãe

O meu pai está sepultado no cemitério de Vila do Conde. Lembro-me do que diz Saramago acerca de sabermos o nome que nos deram, mas não sabermos o nome que temos. De igual modo me parece que sabemos o lugar de onde viemos, mas procuramos depois o lugar a que pertencemos. Pertenço a Vila do Conde. Em dezembro passarão trinta anos desde a vinda da minha família para esta cidade, trinta dos meus trinta e nove, nesse mês, que são quase toda a minha vida.
Quase toda a minha vida tem que ver com estar aqui, mais exatamente nas Caxinas, a conhecer o mundo desde onde se fala um português diferente, tão criativo quanto inspirador para um escritor. Estou onde estão os pescadores, e reparo nas luzes das traineiras que ficam adiante quando vou na marginal, vejo o passo atarefado das mulheres que tomam conta dos dias enquanto os homens assim se ausentam, sinto o vento norte gelado mesmo quando não estou aqui, desconfio das águas com respeito, mas todos os mares me são explicados pela experiência deste.
O Fernando Pessoa dizia que era possível tirar o rapaz da aldeia, mas nunca a aldeia de dentro do rapaz. Mesmamente já poderão levar-me, reter-me, impedir-me para Marte que nunca poderão desfazer estas ruas e estas casas mais estas gentes de dentro de mim. Estas são as medidas essenciais para todas as demais ruas, casas e gentes, com estas afiro com maior ou menor exatidão como são os outros. Nós somos estes. Eu sou destes, a estes pertenço com orgulho.
Sei que para chegar aqui me coube a sorte das opções dos meus pais, mas é inequívoco que continuar aqui, ainda hoje, se deve exclusivamente à minha vontade que, entre muitas viagens, encontra nas Caxinas de sempre o outro lado de tantas saídas, porque pelas Caxinas de sempre defino o conceito de casa e confesso até que não me sinto bem quando estou demasiado tempo longe do seu conforto.
Sob as minhas janelas estão umas arvoritas a tentar crescer há duas décadas. Umas vão sucumbindo e outras aguentando, assim meio a prometer cair porque são muito lingrinhas de troncos finos e delicados. Estou há duas décadas a vê-las pelas janelas e a torcer para que superem as intempéries e os estafermos dos miúdos que passam algaraviados aos pontapés a tudo. De vez em quando, corro o vidro e mando-lhes uns berros para perceberem que há quem espere daquelas árvores uma companhia para muitos anos. O que se vê das minhas janelas não é o mais bonito de Vila do Conde, que é tão bonito, nem sequer o melhor das Caxinas é, mas é o que vejo há tanto tempo que me habituei a pensar que cada coisa existe ali para meu conforto, como uma ideia de estabilidade que é assente na permanência das coisas, coisas em que podemos confiar e das quais esperamos só um acolhimento, um espaço, uma pertença.
Sendo públicas, aquelas árvores são mesmo minhas, e assim tenho todo o direito de estardalhar contra os miúdos e de achar que as árvores dos meus livros são, um pouco, aquelas, as que protejo porque, ainda que não estejam nas praças ou nos jardins principais, são as que purificam o oxigénio perto de mim e sossegam comigo a cada noite, sentindo o mesmo vento norte gelado que, acho, sentiriam ainda que as mudassem, mesmo que as impedissem para Marte.
O executivo da Câmara Municipal de Vila do Conde atribuiu-me uma medalha de mérito. Eu recebo-a com um agradecimento que, dirigido ao executivo, tem de incluir a opção dos meus pais mais as ruas e as casas e sobretudo as gentes a que sinto pertencer. Agradeço aos amigos, por quem vale a pena abdicar das oportunidades das terras maiores para me manter genuíno no tamanho da minha terra. Esta medalha de mérito vai estar entre as minhas coisas mais identitárias, aquelas que guardo como tesouros do meu caráter, da minha alma se a alma fosse coisa de ver e manifestar em objetos.
Tenho um galo de Barcelos que a minha mãe me deu, porque dá sorte, e passei a fazer coleção de galos de Barcelos; tenho um Cristo de plástico que apanhei do lixo quando era pequeno, embora não acredite na transcendência este Cristo é meu amigo; tenho um busto do Mao Tse Tung forrado a veludo vermelho mas que é um mealheiro e diverte-me que o Mao Tse Tung seja assim ironizado; tenho uma estatueta de Saramago e faço-lhe festas na careca; guardo o manuscrito do único poema que o meu pai escreveu; tenho os discos todos da Amália; tenho o meu retrato pintado pela Isabel Lhano; tenho em formato grande a fotografia que o Nelson d’Aires me fez; ainda tenho um cavalo-marinho seco que me ofereceram e sinto sempre pena dele, por isso conto um dia atirá-lo ao mar para que se desfaça na água dignamente; tenho um ipod touch que raramente uso mas que diz amo-te quando o ligo; tenho um colar que me deu um amigo ucraniano depois de ler o meu romance. Entre estas coisas estará a medalha de mérito que recebi. Todas juntas, assim como num abraço que as carregasse a todas, são pistas para as minhas memórias mais marcantes, porque cada uma abre o longo caminho da vida nos seus mais distintos sentidos. O longo caminho da vida, no entanto, que já me levou de Nova Iorque a Hong Kong, de Riade a Maputo ou do Dubai ao Rio de Janeiro, o longo caminho da vida dá sempre para aqui, para as Caxinas e estou certo de que um dia estarei mais do que definido no nome que escolhi, Valter Hugo Mãe, e no lugar a que pertenço, Vila do Conde, quanto mais não seja, a partir do momento em que me deitem ao pé do meu pai.


In JL n.º 1041, de 25 de Agosto de 2010

Havia, de Joana Bértholo

Havia um Ricardo que queria ser um Francisco. Se pudesse ser um Francisco evitaria para sempre ser um João, ou um Manuel, ou um Daniel. Ou até mesmo um Pedro. Também não se importaria de ser um Afonso, um Carlos ou um Bernardo, mas o seu favorito era mesmo um Francisco.
No dia em que um Gaspar encontrou um Ricardo na rua confundiu-o com um Abel e disse-lhe, confuso:
– Bom dia, Martim.
O Martim não queria ser um Ricardo, mas adoraria ser um Rodolfo. Contudo, quando o tentou ser, alguém o confundiu com um Fernando, e desde então deixou-se ficar mesmo um Martim.
Havia um Ricardo que queria ser um Francisco e certo dia encontrou um António que lhe perguntou:
– Como vão os teus pais, a D. Madalena e o senhor Artur?
O Ricardo que queria ser um Francisco ficou perplexo, pois era evidente que um António sabia perfeitamente que os seus pais não se chamavam D. Madalena nem senhor Artur, mas sim, claro, D. Deolinda e senhor Cláudio.


*****

Havia um Daniel que queria ser Francisco, mas nomes há muitos.


In Havia, Caminho, 2012

Querelas, de Afonso Cruz

Diz a regra, a de S. Bento, que o monge se deve confessar a Deus, diariamente e na solidão da cela, em lágrimas. O jovem Fabiano era o noviço que todos os dias entrava na cela do santo e com uma pequena espátula raspava do chão o que sobrava das lágrimas de S. Bento. Ajuntou o sal num frasquinho que ainda hoje pode ser admirado no santuário de Rocamadour.
No ano de 1453, o abade Teodoro de Reims teve graves problemas de desobediência no seu mosteiro. Intrigas, questiúnculas e violência que não conseguia sanar de modo algum, nem com a divina lectio, nem com a confissão, nem com os salmos, oração ou sermão. Nem com os bocados de pão ázimo que é o corpo Cristo, nem mesmo com uma conversa franca (que é o melhor responso). Por isso, um dia, pela ceia, contou a história de Fabiano e das lágrimas de S. Bento. Mostrou aos monges um frasco vazio e disse que havia utilizado o sal para temperar a refeição. Os monges, comovidos com o que lhes era revelado, abraçaram-se e os problemas acabaram ali. Esse sal operara a transmutação, fizera do ódio, amizade.
O abade Teodoro de Reims abandonou nesse mesmo dia o mosteiro onde fora abade durante mais de trinta anos.
– Prefiro não conviver com pessoas que acreditam mais num punhado de sal do que no arrependimento verdadeiro – anunciou o abade antes de voltar para o mundo.


In Enciclopédia da Estória Universal, Quetzal, 2009

O escritor com pouco vocabulário, de Gonçalo M. Tavares

Tinha um teclado de computador que em vez de teclas com letras tinha teclas com palavras. Essas teclas eram substituíveis.
Como o teclado só tinha capacidade para cerca de cinquenta teclas ele havia construído um enorme arquivo. Quando era necessário, isto é, quando queria escrever uma determinada palavra que não estava no seu teclado, ele ia buscar ao arquivo uma tecla-palavra e colocava-a no sítio.
Acusavam-no de ter falta de vocabulário, mas o que ele tinha era falta de espaço.


In Contos de Algibeira, Casa Verde, Brasil, 2007

Thursday, September 26, 2013

O Atlas de Gonçalo M. Tavares


Gonçalo M. Tavares tem novo e monumental livro e nós vamos falar dele. Eis o comunicado de imprensa da Editorial Caminho, acabado de chegar: 

"Gonçalo M. Tavares é verdadeiramente o escritor surpresa do nosso séc. XXI literário. A sua obra conta com dezenas de títulos, abarca quase todos os géneros literários, introduz temáticas inéditas e foi recebida com entusiasmo por milhares de leitores mas também pelos mais reputados e exigentes críticos literários. Está publicado, com forte repercussão, em dezenas de países.
Sai agora na Caminho uma nova obra que certamente se tornará uma referência. Atlas do Corpo e da Imaginação é um livro que atravessa a literatura, o pensamento e as artes, passando pela imagem e por temas como os da identidade, tecnologia; morte e ligações amorosas; cidade, racionalidade e loucura, alimentação e desejo, etc.. Centenas de fragmentos que definem um itinerário no meio da confusão do mundo, discurso acompanhado por imagens de "Os Espacialistas", colectivo de artistas plásticos.
É um livro para ler e para ser visto e é também, de certa maneira, uma narrativa com imagens que cruzam, com o texto, os temas centrais da modernidade. 
Neste Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavares revisita ainda a obra de alguns dos mais importantes pensadores contemporâneos, partindo de Bachelard e Wittgenstein, passando depois por Foucault, Hannah Arendt, Nietzsche, mas também por escritores como Lispector ou Calvino, entre muitos outros. Arquitectura, arte, pensamento, dança, teatro, cinema e literatura são disciplinas que atravessam, de forma directa e oblíqua, o livro.
Com o seu espirito claro e lúcido, Gonçalo M. Tavares conduz-nos com precisão e entusiasmo através do labirinto que é o mundo em que vivemos."

David Machado e a felicidade

"De alguma forma, só somos felizes se as outras pessoas também estiverem bem. Um dos pilares das novas teorias da felicidade é a “felicidade pública”. Se não formos todos felizes ao mesmo tempo isto não faz muito sentido."

David Machado ao JL n.º 1120, de 4 de Setembro de 2013, a propósito do seu Índice Médio de Felicidade. 

LeYa em Grupo na Buchholz


LeYa em Grupo na Barata


LeYa em Grupo

Apresentação
LeYa em Grupo é uma Comunidade de Leitores, organizada pela LeYa e dinamizada pelo jornalista Luís Ricardo Duarte, que procura acompanhar a atualidade literária portuguesa. Os livros para leitura coletiva serão escolhidos entre as novidades recém-chegadas às livrarias ou lançadas há poucos meses. Além do debate em torno das linhas de força de cada romance, a discussão centrar-se-á também no contexto cultural em que estas obras surgem e as suas ramificações nas diversas tradições literárias. Para cada autor, será facultado um dossier biográfico para melhor compreensão da sua escrita.

Objetivos
Promover a leitura; Divulgar a Literatura Portuguesa e Lusófona; Acompanhar a atualidade editorial

Calendário de sessões e plano de leituras
  • Apresentação: o que lemos quando lemos  (LeYa na Buchholz, 2 de outubro; Leya na Barata, 9 de outubro)
  • Índice Médio de Felicidade, de David Machado (LeYa na Buchholz, 16 de outubro; Leya na Barata, 23 de outubro)
  • A Desumanização, de Valter Hugo Mãe (LeYa na Buchholz, 30 de outubro; Leya na Barata, 6 de novembro)
  • O Lago Avesso, de Joana Bértholo (LeYa na Buchholz, 13 de novembro; Leya na Barata, 20 de novembro)
  • Assim, mas sem ser assim, de Afonso Cruz (LeYa na Buchholz, 27 de novembro; Leya na Barata, 4 de dezembro)
  • “O universo de Gonçalo M. Tavares” (LeYa na Buchholz, 11 de dezembro; Leya na Barata, 18 de dezembro)

Periodicidade, horário e duração das sessões
Sessões quinzenais realizadas às quartas-feiras, às 18h30 (90 minutos)

Locais das comunidades de leitores (
Livraria LeYa na Barata – Av. Roma, 11A, Lisboa
Livraria LeYa na Buchholz - Rua Duque de Palmela, n.º4, Lisboa

Organização
LeYa

Dinamização
Luís Ricardo Duarte nasceu em Lisboa, em 1977, e cresceu em Setúbal. É licenciado em História, variante História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), onde foi diretor do jornal Os Fazedores de Letras.  Fez formação complementar em Literatura, ainda na FLUL, e em Jornalismo, no CENJOR. Colaborou em diversas publicações, sendo jornalista do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, desde 2003. Passa os dias a ler e a escrever. E gosta disso.

Preço
30 Euros (Inclui participação em seis sessões, documentação e oferta de vales no valor de 15 euros para compras nas livrarias LeYa na Buchholz ou Leya na Barata)

Informações e contactos
Livraria LeYa na Buchholz |Leya.buchholz@leya.com | facebook.com/LeYanaBuchholz | T. 21 356 3212 
Livraria LeYa na Barata | barata@livrariabarata.com |facebook.com/leyanabarata | T. 21 842 8350